domingo, 9 de outubro de 2011

Noite para Sorrir e Chorar



Hoje a noite é tão agradável que penso em escrever sobre ela. Dia de primavera, sol convidativo, vento fresco, nuvens carregadas se preparando de mansinho e, então, uma chuva muito calma, só pra limpar o domingo. E, agora, a noite. Silenciosa, misteriosa. Tudo como se estivesse pra acontecer uma grande revelação, mas tudo permanece suspenso em dúvida, serena dúvida. Abro as janelas, deixo a escuridão entrar. Do som, como que vagando ao acaso pelo vazio do universo, vem o violão e a voz de Leonard Cohen. O ventilador roda cansado, parecendo afetado pelo calor.

Antes estava caminhando e pensei mais sentindo do que propriamente pensando: o que é uma noite e o que é uma noite? Nem sempre é igual para mim e pra cada um é sempre tão diferente. Pela cidade, nos edifícios brilham luzes de televisão pelas janelas que vislumbro da rua deserta. O final de semana acabou – será que os sonhos se realizaram? Repito: o que é uma noite e o que é uma noite? Passo por alguém que, como eu, parece levado somente por esse vento que sopra tão profeticamente, e penso: como está sendo essa noite para esse aí? Olho para uma casa de jardim bem cuidado, com casinha de cachorro e gnomos de jardim (se fosse Natal estaria ela certamente cintilando de luzes e com o presépio bem aprontado) e penso: como está sendo essa noite para esses que vivem ali? Passo por um mendigo dormindo no banco da praça, deitado sobre papelões que outrora guardaram uma cobiçada televisão de polegadas a perder de vista e que agora dão abrigo a esse corpo tão pouco desejado e em que polegadas de nada servem para medir o sofrimento e a miséria, passo por ele e penso: como está sendo a noite para esse aí? E para mim: como está sendo essa noite? Está ventando, está quente e a cidade está vazia. Mas e aí? Como eu disse: o que é uma noite e o que é uma noite?

Sinto pelo ar a tristeza que a essas horas aparece no domingo. Não, não estou triste – pelo menos não com a angústia dominical. Apenas estou sentindo que se faz presente por aí, em alguns muitos corações, a melancolia que vem num domingo em que choveu e em que o tempo é abafado. A semana deve ter sido tão árdua pra tanta gente. De segunda à sexta o “eu” de cada um deve ter sido tão esquecido em prol dos deveres que às vezes nem sabemos por que temos – sei disso, pois muitas vezes já me senti assim. Tudo aquilo que o espírito anseia, toda a solução dos questionamentos, toda a distância entre o “eu” que atua e entre o “eu” que é, tudo é jogado para o final de semana, esperando uma redenção. Aí vem a noite de domingo, sempre implacável, peguntando: o que você fez com a sua vida? E é a vergonha e a falta de esperança em si que domina a audiência dos programas de auditório. Assim, o Fantástico termina sendo o “show da vida”. O show está na televisão, fora de nós. Somos espectadores de uma realidade em que gostaríamos de sentirmos como nossa - não como posse, mas como companheira.

Sei ser profeta, sei do seu destino e de todos os demais: sei que morrerá. Admitamos: há alguma mentira nisso? É mais certa a morte do que o amor de mãe. Só que com tanta melancolia no domingo, com tanto “show da vida” na televisão, com tantas esperanças de satisfação do ego na internet, a morte, tão amiga da realidade, vira a “tragédia da vida”, só que essa não aparece só no domingo à noite. Vem a qualquer hora. O pior é que nisso ainda me sinto enclausurado. Não pense que tenho o privilégio de aceitar o final do meu ser. Não é fácil mesmo, mas é por isso que caminho nessa noite, sendo carregado pelo vento, tão real como esse calor que me faz suar e desejar um banho de cachoeira com a mulher que eu amo – bem melhor que desejar um ar condicionado, né? É por isso que caminho tanto. É por isso que sinto amor e saudade. É por isso que sofro até chorar aquilo que penso ser a última gota – mas sempre vem mais.

E, caminhando, vejo essas pessoas, essas ruas vazias, essas casas tão arrumadas por fora, esses edifícios recheados de angústia. Como serão as outras pessoas? Eu queria saber. Sei muito bem que não sou o único apavorado com o fato de viver e de existir – pelo contrário, meus questionamentos podem ser até pueris para alguns, mas são meus questionamentos. Eu queria encontrar mais companheiros nessa caminhada noturna. Mas a cidade está vazia. Todos recolhidos em seus apartamentos. Alguns recolhidos conscientes de si; muitos recolhidos ausentes de si. Já deu pra entender o porquê da minha dúvida: o que é uma noite e o que é uma noite? Ou então, do mesmo modo: o que sou eu e o que são os outros? Repito: por isso caminho. Por isso amo a implacável pergunta das noites de domingo: como anda a sua vida, meu amigo?

Agora estou em casa, curtindo meus próprios devaneios. Há prazer em ter dúvida. Há até um certo orgulho em ter confiança no acaso. Gostaria de sempre ser assim, mas não se engane, porque minha tristeza é grande. Só que acho que é tristeza minha, tristeza amiga, posso dizer. Até desesperadora, às vezes, mas amiga, sim! Assim, encanto-me com o ventilador fadigado, com o Leonard Cohen – tão sentimental -, com a minha própria vida incerta, com a minha morte certa. Encanto-me por estar apaixonado por uma mulher, amando-a por inteiro, como pedia o Vinícius de Moraes. Nessas horas me dou conta que isso sou eu e esse é o universo. Nessa noite tão agradável vejo minha vida, meu amor, meu sofrimento e minha morte.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A distância entre sentir e pensar. A distância da saudade.


“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente...”
Autopsicografia, Fernando Pessoa

Por muito tempo passei meus olhos sobre esse trecho desse poema pensando entendê-lo. Hoje, penso que não compreendia-o profundamente. O que é a dor do poeta? Por que fingi-la?
A dor e a expressão dessa dor. O sentimento e a expressão do sentimento. São dois extremos separados pelo nebuloso e encantador universo das emoções. Talvez a subjetividade de um sofrimento ou de um amor seja tão esmagadora frente à sua racionalização que o poeta termine por se sentir um fingidor, tal como Fernando Pessoa nos conta. Por mais aguçada que seja nossa percepção artística e nossa criatividade, estamos sempre correndo atrás do coração, tentando reproduzir para nós mesmos a avalanche sentimental que ocorre nas quase impenetráveis cordilheiras do nosso espírito. Mas, no fim, o fingimento do poeta nasce da mais pura e genuína emoção. Nasce do amor, da dor, da saudade. Nasce da sensação de ter tudo para dizer e não conseguir falar tudo o que se gostaria e tudo o que se sente. Não é um fingimento propriamente dito. Antes, é tentativa de aproximação com o nosso íntimo. Porém, que nunca se dá da forma mais clara possível, sem deixar dúvidas racionais. No fim é isso: estamos apenas racionalizando o que dentro de nós se dá de maneira totalmente irracional.
Hoje, eu penso na saudade. Ah, a saudade... Bem inestimável da língua portuguesa. Mas o que é a palavra escrita e o significado dela? Não, não falo sobre o que está no dicionário da língua culta. Falo do dicionário da vida. E a diferença entre esses dois nos remete àquela separação entre intenção e gesto, entre sentir e escrever. O que realmente significa sentir saudade? Para algumas pessoas há um momento na vida em que as palavras trazem seus próprios insights. De repente, algumas letras ordenadas de forma a produzir um som reconhecível em um dado meio cultural tocam nosso espírito como se fossem materializações dos nossos sentimentos. Assim me senti quando percebi estar com saudade. Genuína saudade. Essa palavra, de alguma forma, conseguiu traduzir meu amor, minha dor e uma sensação de vazio e de ausência que permeava todo o meu ser. Fiquei orgulhoso de trazer essa palavra para dentro de mim, como coisa íntima minha. Conheço há tanto tempo essas letras dispostas dessa forma, mas pela primeira vez vi além delas. Claro, só ela não preenche o quadro de tudo o que se passa em mim. Há muito espaço em branco nesse quadro. Um vazio ativo, em que tudo acontece, mas que não consegue encontrar meio de ser exposto. Contudo, entender a palavra “saudade” me ajudou a entender o que se passa. Saudade vai muito além do sentir falta. Saudade nos remete ao passado, trazendo as mais amáveis lembranças. Saudade nos lança para planos futuros, para momentos em que essa dor não nos tocará mais. Saudade traz medo de não ter mais por quem sentir toda essa saudade, o que nos traz toda a dor desse sentimento. Saudade faz a vida valer a pena. Saudade faz a vida ser intensa. Essa palavra traz amor, vazio, solidão, bem-querer, medo de perda e faz o tempo passar devagar. Pra quem fica, saudade dói e a distância é maior. Pra quem vai, eu não digo nada, porque saudade é sentimento, e sentimento é coisa pessoal.
E, escrevendo isso, talvez eu me sinta um fingidor, como o Fernando Pessoa. Não por estar dissimulando sentimentos. Não, pelo contrário até! Talvez eu seja um fingidor apenas porque estou terminando esse texto e sinto que não consegui passar quase nada da imensa saudade que sinto. Mas ela existe! Minha saudade é tudo isso e muito mais. Minha saudade mora longe, mas vive intensamente dentro de mim. Minha saudade tem endereço. Mora em Sevilla.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Papel em Branco


Escrever, penso, tem o potencial de ser uma auto-análise. Verbalizar dúvidas e sentimentos e evoluir frase a frase em um pensamento terminam, de alguma forma, por nos aproximar de algo que não definimos bem o que é, mas que claramente nos deixa mais íntimos de nossas tragédias e felicidades. Porém, hoje, tive uma ideia um pouco diferente sobre a escrita e a terapia. Ei-la: não é necessário chegar ao texto consumado, bastando, para a terapêutica da mente, o papel em branco em frente aos olhos.
Essas linhas em branco, flexíveis a qualquer pensamento, desprovidas de julgamento, que ganham vida a cada nova letra ali inserida, são a porta de entrada à nossa auto-percepção. Hoje quis escrever, sem saber exatamente o quê. Para ser sincero, não fazia a menor ideia de qual assunto abordar. Apenas queria pensar e passar isso às palavras. Porém, como sempre, entre mim e o texto elaborado, surgiu, antes que qualquer temática surgisse em minha mente, aquela folha branca. Inicialmente, pareceu-me um pouco intimidadora. Ver esse papel vazio e perceber que minha mente não tinha nenhum mísero assunto para explorar causaram-me, num primeiro momento, uma perplexidade ante a dissociação entre a vontade de escrever e a total falta de um plano ou, quem sabe, talento para tal. É como ser criança e se estar louco para jogar futebol, tendo à frente um gramado perfeito, mas, contudo, não há bola para ser chutada. E ali fica o gramado, vazio, servindo só para que os olhos das crianças fiquem a imaginar jogadas inimagináveis. É o palco para a fantasia, para o desabrochar dos mais sinceros sonhos e vontades. E eu aqui, com a folha em branco, mas sem um tópico. Aqui, o palco é o papel. Palco para mim, para os meus devaneios. De repente, a música vai rolando, a madrugada vai chegando, a noite vai silenciando, e aquela folha vazia fica cheia de vida e sentido. Quando dou-me conta, está acontecendo a minha auto-análise. Bastou aquele papel baldio para um fluxo de pensamentos iniciasse a sua errática trajetória. Apenas pensamentos, sem uma finalidade definida, que, se primeiramente queriam ser direcionados para a palavra escrita, terminaram por não ser mais do que simples pensamentos.
O texto terminado e coeso não é mais do que uma consequência, o resultado de se ter um gramado receptivo às nossas mais íntimas fantasias de jogadas de craque. A melhor sensação que resulta disso tudo é que simplesmente tive abertura para dar uma circulada entre a minha complicada e misteriosa cabeça. Tudo acontece, antes de tudo, com a folha em branco, com aquele momento que antecede a decisão, quando qualquer coisa pode passar pela mente. E o papel vazio é o convite para a reflexão, para que saiamos do coma e da automaticidade dos afazeres diários para adentrar nos insondáveis e improváveis caminhos do espírito.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Como anda a vida?


Na maior parte do tempo, a vida passa de forma tão despercebida que parece que não temos nenhuma ação sobre o desenrolar dos fatos. Aí, de repente, nos damos conta do óbvio: as coisas estão acontecendo. Ou, num tom mais pessimista, mas chegando ao mesmo fim: a morte inevitavelmente vai acontecer. Tanto faz a abordagem, o que quero dizer é que levamos quase um susto quando nasce a percepção da passagem do tempo. Então vem a questão, que, infelizmente, acho que nem todos enxergam: tem valido a pena esse tempo? Ou, pelo menos, está ele sendo razoavelmente bem vivido?
A questão de aproveitar a própria vida fez crescer, no transcorrer da história da humanidade, definições daquilo que seria uma vida virtuosa. Penso que o fim de boa parte das religiões é estabelecer um caminho mais ou menos racionalizado para que almas teoricamente perdidas possam alcançar algum tipo de redenção espiritual, muitas vezes difícil de ser atingido pelo meio individual. Daí nascem as privações, os rituais, a moralidade, a noção de certo e de errado, a dualidade do bem o do mal. Culturas particulares criam meios próprios para estabelecer dentro do seu meio o que caracteriza uma vida que vale a pena ser vivida. Dentro de algumas religiões, como a católica, encontramos uma ideia de buscar uma vida virtuosa para um observador, no caso, Deus. Penso que, consequentemente, perde-se aquilo que é de maior valor quando buscamos a satisfação com nossa própria história, que é justamente a auto-crítica. Vive-se de acordo com a própria liberdade ou para um observador externo que, como um pai, aprova ou não os nossos atos? Não é a por acaso que nasce uma nova sensação de bem-estar e novo auto-conhecimento quando saímos dos nossos tenros lares para morarmos sozinhos em uma cidade distante. Semelhantemente, quem sabe contar e recontar a própria história sem um “editor” dando pareceres sobre o nosso roteiro não possa desencadear uma sensação parecida com essa do adeus ao âmago familiar? Isso não implica, penso eu, na descrença em relação a Deus ou o quer que seja. É apenas a mudança da visão de um universo opressor e julgador para uma vivência em que temos participação nos acontecimentos. Mais do que isso, uma vivência em que nos sentimos ligados à complexa teia da existência.
Das definições acerca do que seria uma vida vivida cheia de plenitude a satisfação gosto daquela escrita pelo filósofo e matemático inglês Bertrand Russell, que assim escreveu: “uma vida virtuosa é aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento”. Amor e conhecimento, duas coisas muito pessoais, capazes de serem alcançadas em maior intensidade somente com a sinceridade em relação aos próprios sentimentos. Inevitavelmente, para uma vida inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento, precisamos de auto-consciência. Precisamos de abertura para as emoções e de liberdade de pensamento, algo difícil de ser atingido com aquele ideal de buscar a redenção perante algum deus.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Poema da Distância



As coisas que sinto e as palavras que saem da boca
São como um céu com nuvens carregadas
Que sabia que precisava fazer chover
Mas passou de maneira silenciosa por esse lugar.
E as palavras certas
Como a chuva certa
Não jorram
E passam flutuando por entre a névoa dentro de mim.

Estou olhando o campo
E ao longe vejo uma árvore
Menos distante do que minha voz
Separada da minha alma.
Até a árvore posso caminhar
Sigo em linha reta pela pastagem
Mas para encontrar o que sinto
Não encontro trilha tão óbvia.

Não é um campo que me separa
Não são passos que preciso dar
A distância não pode ser medida
Não pode ser percorrida
Mas pode ser sentida.
E há um belo e profundo mundo ao redor
Pessoas, natureza, tristeza, amor
Tenho vontade de dizer o quanto gosto do que gosto
Tenho vontade de dizer o quanto me afeto pela tristeza
E por mais que tente chegar nessa ponto
A palavra sai sempre menor do que aquilo que ela representa.

Não são essas palavras aqui
Mais do que uma tentativa
De eu tentar me abrir plenamente para o que amo
De eu tentar chegar no porquê da minha angústia.
São incertas essas palavras
Tortas como esses galhos da árvore que antes eu contemplava de longe
E que agora vejo de muito perto.
Caminhei até aqui.
Pelo menos fica o testemunho escrito
Do meu caso de amor com tanta coisa nesse mundo
E da minha tristeza também (porque ela também há)
E das palavras que faltam pra eu dizer isso.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vento das Onze

O relógio vai se aproximando da meia noite e a rua já está completamente silenciosa – de barulhos humanos. Apenas o vento quente que sopra a essas horas do dia faz as folhas das árvores farfalharem. Eu, sozinho, deitado em meu sofá, apenas com um abajur de luz amarela aceso, lentamente absorvendo um encantador vinho tinto enquanto sinto o regozijo mais do que justo de quem acabou de ouvir “Rhapsody in Blue”, de George Gershwin, e sentiu a música em sua plenitude. Agora, o silêncio – da alma. O barulho do vento só empurra a mente cotidiana para mais longe, não sendo exatamente um som em si. Antes, apenas suspende o dia-a-dia ordinário, varrendo-o para um lugar distante, fazendo brotar em mim a serenidade de um espírito vazio e cheio de contemplação por esse momento nessa noite calma.
De repente, uma pergunta: como foi o primeiro vento? Em que planície, montanha ou deserto ocorreu? O que mudou? Já existiam planícies, montanhas ou desertos quando o primeiro vento soprou? Já havia algo para ser mudado?
Sinto um peso no peito. Que pergunta simples, triste e, ao mesmo tempo, maravilhosa! Simples pelo vento que sempre vem, triste pela solidão de soprar no vazio e maravilhosa por levar tudo ao desconhecido. Não sei as respostas para tais perguntas, mas, estando com a mente suspensa nesta noite incerta, ofereço-me o direito da imaginação.
Não consigo definir exatamente quem sou, o que penso e o que virei a ser. Porém, poder imaginar como foi o primeiro vento faz com que essas perguntas não tenham muita importância. Sinto que estou aqui deitado nessa noite de verão pelo mesmo motivo que o primeiro vento soprou: para ir até qualquer coisa. Essa incerteza, que pode ser chamada de liberdade, deixa-me imaginar como foi o primeiro vento, e deixa-me ficar tranquilo por não ter uma resposta sobre qual é o meu caminho.
Não sei como essa noite vai terminar. Por hora, estou apenas deitado. E assim vou ficar mais um pouquinho. A maior verdade sobre mim é que não há verdade dita ou pensada sobre mim. E, por vezes, eu mesmo tento alguma definição ao meu respeito, mas então vejo que isso é puro medo. Nesses momentos, estou apenas tentando ser alguma coisa qualquer quando me deparo com as infinitas possibilidades de ser e de sentir qualquer coisa, tentando ser algo estático, definido e eterno, que ilusoriamente me pouparia da angústia e do amor absurdamente grandiosos que permeiam o universo. E, quando estou deitado, sereno e em paz, sinto-me completo não sendo necessariamente alguma coisa que eu penso ser. Sinto-me capaz para ser levado para qualquer lugar.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Fluxo


Escrevi o texto abaixo num momento de muito bem estar interior, num momento em que não tinha nada pra reclamar. Então, eu escrevi qualquer coisa para ver o que iria acontecer. Acabei falando sobre o fluxo das emoções por um método de fluxo de pensamento. Então, às vezes há uma mudança um pouco brusca de abordagem de um parágrafo para o outro (afinal, o pensamento não é linear). Espero que, pelo menos, seja compreensível...
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E quando não se tem nada a dizer? E quando tudo parece resolvido?

A tristeza, a solidão, a indignação e, sobretudo, a subjetividade são quem suportam, muitas vezes, a criação artística. Não são sentimentos desesperadores, mas poderiam sê-lo se não fossem extravasados pela literatura ou pela música, por exemplo. Expô-los misturados à arte torna-os contemplativos e naturais, à medida que a internalização dessas questões pode trazer o isolamento, que consigo traz a paranoia e a ausência de resolução desses sentimentos.
Mas quem sente essas coisas, por certos momentos também se sente feliz, completo e satisfeito até com as pequenas coisas da vida. Sentir-se triste ou feliz em um campo da vida tem um efeito dominó em todo o resto, de forma que não é incomum convivermos ou com o desamparo ou com a mais completa satisfação e segurança na própria vida. Se tudo está complicado e tende-se ao isolamento, o refúgio artístico nos liga novamente ao mundo e à segurança do próprio ser. Se tudo está bem, parece que nos inclinamos a simplesmente ouvir um bom som, tomar um vinho apreciável e se deliciar com tudo o que está ao redor. A vida flutua entre esses dois estados de espírito, de forma tão natural como um pescador que sobe o rio para pescar e que naturalmente deverá descer a correnteza para reencontrar sua casa e sua família. Porém, esse pescador pode sofrer um acidente de percurso. Por exemplo, e se o barco virar?
Às vezes, ficamos enclausurados em algum tipo de humor. A tristeza nos prende contra a vontade. Da (suposta) felicidade não queremos fugir. Mas por que coloco sob suspeita a mais convicta sensação de bem estar? Justamente por muitas vezes felicidade não significar felicidade em si, mas, sim, antes significa abdicar do risco de ser plenamente feliz para não correr o risco de passar por algum momento de tristeza. Por isso, estar enclausurado na “felicidade” pode ser uma coisa pouco desejável. E, por isso também, levar porrada da vida algumas vezes não é de todo indesejável. Só quem não aceita o inevitável fluxo das emoções pode pensar que estou fazendo propaganda em favor de sentimentos de melancolia (quem sabe eu esteja sendo pago por uma indústria farmacêutica que faz remédios anti-depressivos...). Existe diagnóstico psiquiátrico pra depressão. Às vezes, eu acho que deveria existir diagnóstico também para aqueles que dizem que são sempre felizes e que tudo é sempre perfeito em suas vidas.
Fernando Pessoa, ao escrever “Poema em Linha Reta”, iniciou o poema da seguinte forma:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campões em tudo.”

Mas o que define alguém como “campeão”? Admiração, sucesso profissional, riqueza, uma mulher linda? Não cabe julgar os caminhos da felicidade de cada um, mas, no geral, buscamos, através dos mais variados meios, uma sensação de plenitude, uma sensação que se aproxime daquilo que vagamente definimos como felicidade. Então, se o que, no final, buscamos é um sentimento, acho que o maior campeão é aquele que é minimamente sincero e conhece pelo menos um pouco os misteriosos caminhos das próprias emoções. Por isso, para mim, o campeão verdadeiro é o Fernando Pessoa, que, a despeito de tanta porrada, escreveu “Poema em Linha Reta”, entre tantos outros.
Tem um ditado alemão, muito duro até, que diz o seguinte:

“Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho”.

Precisa dizer mais alguma coisa? Sim, as cordas vocais de quem criou esse ditado devem ter esquecido como se faz o som da palavra “amor”, mas obviamente quem faz muita questão de ser percebido e de ter sua suposta felicidade anunciada aos quatro ventos seguramente tem pouca intimidade com as bases que fundamentam essa emoção.
A questão que se impõe é se vale a pena corrermos o risco de conviver com a melancolia ou se a estabilidade (acho que, neste caso, é um termo melhor do que “felicidade”) deve ser mantida para evitarmos a tristeza? Acho que quem lê isso pode ter a sensação de ter respostas óbvias para essa questão (e acho que para os dois lados). Para alguns, todo sentimento de infelicidade é primariamente inadequado; para outros, a tristeza é um caminho natural para quem persegue o bem estar de espírito.
Para mim, fugir das “porradas” da vida não implica em abandonar o sofrimento. Quem tenta isso, penso eu, torna-se menos íntimo de si. Apesar de buscar a felicidade, não acho que fugir da tristeza seja um bom meio para isso. Também deliberadamente buscar a melancolia não acho particularmente uma atitude louvável. Agora que termino de escrever isso aqui começa a tocar no som “No Expectations”, dos Rolling Stones.

“Take me to the station
And put me on a train
I've got no expectations
To pass through here again

Once I was a rich man and
Now I am so poor
But never in my sweet short life
Have I felt like this before...”

Acho que é um bom final. Sem muitos planos sólidos e determinantes da nossa felicidade. Apenas no subir e descer do pescador. Um dia o barco acaba inevitavelmente virando. Enquanto isso, a paisagem é rica, o rio é desconhecidamente profundo, as margens são incompletamente exploradas. Navegar de uma só forma exclui o rio da riqueza da paisagem.

http://www.youtube.com/results?search_query=no%20expectations&search=Search&sa=X&oi=spell&resnum=0&spell=1
Link para a música "No Expectations", dos Rolling Stones...